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94º Concerto de Discos
22 de julho de 1954
20 pessoas
1ª parte
Ravel
A obra de Maurice Ravel constitui um dos pontos mais altos da música moderna francesa. Após um período de confusão inicial da crítica, em que erroneamente se viu nele um impressionista, um simples continuador ou repetidor de Debussy, percebeu-se que Ravel poderia dever alguma coisa a seu grande antecessor, como devia a seu mestre Gabriel Fauré, a alguns russos e a muitos outros músicos pelos quais ele próprio confessava sua admiração; mas percebeu-se também que seu espírito e sua linguagem eram totalmente diferentes dos de todos esses músicos e especialmente de Debussy, de quem ele tanto fora aproximado. À sugestão lírica, a vaga atmosfera de símbolos em que se move a música de Debussy, Ravel opunha uma emoção discreta, mas nitidamente definida. E com a espontaneidade criadora de Debussy contrastava a rebuscadíssima técnica de Ravel, mestre da forma, virtuose excepcional da instrumentação, perseguidor incansável do bem-acabado. Por tudo isso, Ravel ficou situado na história da moderna música francesa como um neoclássico, em cuja música se fundiram uma sensibilidade requintada e contida, e a perfeição técnica. Mas não são raros os que vêm no excesso de perfeição, no profundo recato, na fuga deliberada de qualquer transbordamento emotivo (que aliás caracterizaram não só o artista, mas também o homem) um prejuízo sofrido pela obra de Ravel, pois que ela, por essas circunstâncias, muitas vezes caiu num verdadeiro artificialismo.
A "Schéhérazade", que inicia nosso programa, é um ciclo de três poemas para voz e orquestra, sobre versos de Tristan Klingsor. Escrita em 1903, "Schéhérazade" destinou-se inicialmente a voz e piano, sendo orquestrada depois. É pois um dos muitos exemplos de um processo criador largamente encontrável em toda a produção de Ravel. Esse ciclo de peças situa-se exatamente na fase em que a música de Ravel fixou suas características próprias, fase que vai aproximadamente de 1901 a 1903. A parte vocal da "Schéhérazade" rastreia as inflexões dos textos dos poemas, procurando moldar a eles um exato comentário musical. Sabe-se que, para alcançar esse ajuste, Ravel observou atentamente o modo pelo qual o próprio Tristan Klingsor declamava os poemas. Diz Armand Machabey que, em "Schéhérazade", Ravel "põe em ação todo o complexo arsenal harmônico que tirou do piano e, ao mesmo tempo, uma fórmula melódica pessoal, trabalhada, mas graciosa, elegante e muito próxima do texto pela sua obediência ao ritmo prosódico. (...) Ravel conservou, na composição, uma fórmula característica da Schéhérazade de Rimsqui, e sua orquestra, muito carregada para Ásia, duma escritura sintética, condensada, rápida, toda em fluidos melismas sob o canto da Flauta Encantada, torna-se leve ao extremo para O Indiferente, a mais curta e talvez a mais bonita dessas páginas".
Bibliografia:
Armand Machabey: "Maurice Ravel". Paris, Richard-Masse, 1947.
Norbert Dufourcq: "La Musique Française". Paris, Librairie Larousse, c1949.
J. Gaudefroy-Demombynes: "Histoire de la Musique Française". Paris, Payot, 1946.
Ravel (França, 1875-1937): Shéhérazade
Duração: 45:37
2ª parte
Manuel de Falla
Uma das consequências do movimento romântico do século XIX foi a procura, em música, da caracterização nacional marcante, manifestada principalmente nos países sem amplas tradições musicais cultas ou entre os que tinham perdido contato com essas tradições.
Uma das escolas nacionalistas que mais atraíram a atenção geral foi a da Espanha, cuja velha música jazia na sua maior parte nos manuscritos arquivados em igrejas, palácios, teatros e bibliotecas, e cuja vida musical se italianizara largamente do século XVIII até meados do século XIX.
As atividades didáticas e musicológicas de Felipe Pedrell, nascido em 1841 e falecido em 1922, marcam o início dessa corrente nacionalista do fim do século XIX e princípio do atual. Voltando-se para as pesquisas da música folclórica espanhola, bem como entregando-se ao labor de vasculhar arquivos e publicar a música antiga do seu país, Pedrell foi não só a base em que se fundou esse nacionalismo musical, mas também o fundador da musicologia científica hispânica.
Manuel de Falla, continuador de uma cadeia de músicos ilustres, é o maior nome que, em consequência do movimento iniciado por Pedrell, a Espanha deu à música contemporânea. Suas obras, destinadas ao teatro e à orquestra, libertaram-se em grande parte do característico excessivo, do rastreamento estreito de fórmulas folclóricas, que já estava prejudicando a música espanhola, pois que a estava tornando monótona por excesso de cor local. Em Falla quase não há mais a utilização literal de processos folclóricos, que ele substituiu, com maior verdade artística, por uma assimilação pessoal do espírito musical do seu povo. Um exemplo dessa libertação e do seu retorno às tradições instrumentais que tanto ilustraram a Espanha do século XVI ao século XVIII, é o seu Concerto para cravo e orquestra de câmara.
Das obras de Manuel de Falla, a mais conhecida é por certo o bailado "El Amor Brujo", do qual um dos trechos - a famanada "Dança Ritual do Fogo", que ele próprio arranjara para piano - chegou a transformar-se numa espécie de calamidade pública, tanto a sovaram pianistas bons, ruins e péssimos. Não resta dúvida, entretanto, de que "El Amor Brujo", a quem principalmente Manuel de Falla deveu sua popularidade internacional, é uma de suas obras representativas, embora curiosamente a crítica de seu país a considerasse, quando de sua estreia em Madrid em 1915, música fraca e muito pouco espanhola.
O entrecho do bailado, necessário a compreensão da música, baseia-se no seguinte conto cigano, de que a ação se passa na Andaluzia:
“A bela cigana Candelas ama o jovem Carmelo, mas sempre que deseja lançar-se em seus braços, vê aparecer o espectro ameaçador de um homem a quem amou outrora, que a torturou em vida e continua a atormentá-la depois de morto. Candelas sente-se escravizada à tirania ciumenta desse Fantasma. Mas uma de suas amigas que conhece o caráter volúvel do perseguidor, aceita desviar um instante para si a atenção do vigilante espião de além-túmulo. Enquanto o Fantasma faz assim a corte à astuciosa, Candelas e Carmelo podem enfim trocar seu primeiro beijo de amor, que quebrará o encanto fatal". (De "L’Initiation a la Musique").
O bailado compõe-se de 13 trechos, dos quais 3 incluem uma voz de contralto solista. A gravação apresentada em nosso programa contém apenas seis números, instrumentais: "Introdução e Cena"; a "Dança do Terror", em que "Candelas se debate contra o espectro que a persegue"; “O Círculo Mágico" e a "Dança Ritual do Fogo (para afugentar os maus espíritos)", trechos em que, por sortilégios, Candelas procura livrar-se da perseguição do Fantasma; a "Pantomima", que precede uma "Dança do Jogo de Amor" entre Candelas e Carmelo, em que a cigana se liberta da tirania do espectro; e o Final, onde os sinos da aurora "dissipam os malefícios noturnos" e anunciam a liberdade do casal amoroso.
Bibliografia:
Oneyda Alvarenga: Comentário ao 78º Concerto de Discos.
Autores diversos: "L’Initiation à la Musique", edições francesa e espanhola.
Manuel de Falla (Espanha, 1876-1946): El amor brujo
Duração: 24:23