Ouça a leitura desse concerto:
21 de maio de 1954
12 pessoas
1ª parte
1 - A Canção trovadoresca (séculos XII e XIII)
Até o século XII, a música europeia foi exclusivamente religiosa, não restando mesmo documentos de música profana dos onze primeiros séculos da civilização cristã. É com o século XII que surge na história da música a primeira eclosão forte e organizada de música profana artística: o movimento dos Trovadores, que teve por foco principal a França, de onde se irradiou para diversos países europeus.
Eram chamados Trovadores os poetas músicos, compositores de canções em língua vulgar, isto é, nas línguas populares nascidas do latim deturpado e que iriam constituir as chamadas línguas neolatinas ou românicas, como o português, o francês, o italiano e o espanhol. E se foi grande a importância musical dos Trovadores, não foi menor o papel que eles desempenharam na evolução das línguas europeias. Abandonando o latim usado pelos eruditos, os Trovadores deram direitos culturais e artísticos às línguas do povo, espalhando-as, desenvolvendo-as e fixando-as. Por isso é que, muito antes dos musicólogos dirigirem as suas vistas para a música dos Trovadores, os filólogos de toda parte já lhes tinham buscado e esmiuçado os textos literários dos cancioneiros.
Embora no repertório trovadoresco houvesse canções narrativas, sátiras políticas, polêmicas músico-poéticas sobre questões de arte ou de moral, os Trovadores cantaram de preferência o amor. Um amor requintado, discreto, elegante, cavalheiresco, bem eivado de misticismo, e que obedecia a uma verdadeira teoria amorosa, chamada teoria do amor cortês.
Ao mesmo tempo que recebiam do povo a língua e o espírito profano, os Trovadores provavelmente foram buscar no canto litúrgico da Igreja, o Gregoriano, as bases técnicas e artísticas da sua música, através do ensino haurido nas Escolas de Canto mantidas por igrejas e mosteiros. Antes da criação das primeiras universidades europeias, o que aconteceu lá pelo século XIII, essas Escolas de Canto é que se encarregavam não só do ensino da música, mas do ensino em geral. É possível, portanto, que nelas os Trovadores fossem buscar seus conhecimentos. Além de que sabidamente muitos Trovadores moraram em mosteiros ou foram mesmo clérigos, o estilo e principalmente o feitio melódico da música trovadoresca traem claramente a influência dessas Escolas de Canto.
Pelos discos que se vão seguir, o ouvinte perceberá com facilidade como essa música lembra bem de perto o Gregoriano, o cantochão. Só escapa à marca evidente da influência estrutural da música litúrgica da Igreja, o terceiro exemplo, a rude e violenta canção de Ricardo Coração de Leão, de quem, como se vê, não só a história política guardou o nome famoso. E político é o conteúdo dessa peça, escrita por Ricardo Coração de Leão entre 1193 e 1194, quando esteve prisioneiro de Henrique VI. No extraordinário vigor do seu movimento musical, a canção expressa bem a fúria de Ricardo contra os que o abandonaram e traíram.
Já nos demais exemplos, o parentesco com o Gregoriano é sensível. Vê-se nas canções amorosas de Blondel ou Blondeau de Nesles, trovador do século XII, e de Perrin d'Angicourt, do século XIII, em que as melodias expressivas movem-se com elasticidade notável, livres, ricas de inflexões, desdobrando-se sem tropeços e sem brusquidão. E ressalta com enorme evidência nas peias de Walther von der Vogelweide e Rumelant, onde os melismas característicos do Gregoriano chegam mesmo a chocar-se com a índole da pesada língua alemã, como bem salientou Curt Sachs.
Walther von der Vogelweide e Rumelant pertencem a um movimento alemão que constituiu umas das várias repercussões internacionais do Trovadorismo francês: o movimento dos "Minnesinger", ou cantadores de amor, que teve sua melhor floração no século XIII e que acentuou ainda mais a espiritualização do amor e o misticismo, já fortes nos Trovadores. Por isso é que, além de usarem frequentemente assunto religioso nas suas canções, os Minnesinger apresentam aquela maior ligação com o canto litúrgico, tão perceptível na "Canção do Cruzado" de Walther von der Vogelweide, e em "Se de todo amor", cântico de Rumelant à Virgem Maria.
Discos
Blondel de Nesles (França, século XII/XIII): A l'entrant d'este
Duração: 04:45
Perrin d'Angicourt (França, século XIII): Quand voit a{n?] la fin d'estey [d’este?]
Duração: 04:18
Ricardo Coração de Leão (Inglaterra, 1157-1199): Ja nuns hons pris*
Duração: 09:36
Walter von der Vogelweide (Áustria, 1170?-1230): Kreuzfahrerlied
Palästinalied
Duração: 03:51
Rumelant (Alemanha, 1273-1300): Ob aller mine
2 - A arte nova (século XIV) – Baladas
Embora apresentando ainda alguns grandes nomes, na segunda metade do século XIII o Trovadorismo entra em declínio suplantado pela polifonia religiosa nascente, isto é: pela música escrita a várias vozes ou partes melódicas superpostas, individualizadas mas interdependentes, juntando-se e movendo-se em sentido horizontal. Entretanto, a semente plantada pelos Trovadores não morrera. Daí, a música profana continuaria a desenvolver-se lenta mas seguramente, até atingir no fim do século XVI o predomínio absoluto sobre a música religiosa, que vem até nossos dias.
Assim é que o século XIV vê surgir, principalmente na França e na Itália, um movimento a que seus participantes deram o nome de Ars Nova, isto é, Arte Nova, Arte Moderna, contrapondo-o à polifonia religiosa anterior, a que chamaram Ars Antiqua, Arte Antiga. Com a música da Arte Nova, já muito imbuída de espírito profano, de movimento, de cor, de graça amável, esboçam-se realmente os primeiros sintomas da Renascença, que teria sua plena eclosão no século XVI.
A Arte Nova francesa teve seu maior representante em Guilherme de Machault que, embora padre, foi considerado pelos literatos do seu tempo como "o cantor por excelência do amor". O musicólogo francês Amedée Gastoué assim o pinta: "Personalidade singular, ele é, conforme as circunstâncias, homem da igreja ou do mundo, diplomata ou diletante, piedoso ou libertino, literato ou compositor. De qualquer modo, uma inteligência viva e variada".
A tão larga música profana de Machault é exemplificada em nosso programa de hoje com uma Balada e um Virelai. A Balada (palavra que vem do italiano "ballo", dança) foi originariamente, como o seu nome indica, uma canção para dançar. Largamente usada pelos Trovadores, a Balada ainda permanecia intensamente cultivada no século XIV. Mas aí já a encontramos mais trabalhada e enriquecida, convertida em canção aristocrática que não se destinava mais à dança e versava temas amorosos com alusões mitológicas, assumindo musicalmente por vezes forma polifônica. O Virelai é também uma espécie de Balada, a que Guilherme de Machault deu o mais alto esplendor artístico.
Essas duas peças de Machault, encantadoras como graça e expressividade, têm o seu encanto aumentado pelo timbre dos velhos instrumentos da época, que lhes realça o delicioso sabor arcaico.
Disco
Guillaume de Machault (França, 1300-1377): Je puis trop bien e De tout sui si confortée
Duração: 04:16
O maior compositor da Arte Nova italiana foi o cego Francesco Landino, organista da igreja de São Lourenço em Florença, de quem dizia o secretário da municipalidade: “Glorioso nome para a nossa cidade e luz para a igreja florentina provêm deste cego".
A peça de Landino que apresentamos é uma Balada dupla, forma iniciada por Guilherme de Machault, escrita a duas vozes com acompanhamento de partes instrumentais. Esta esplêndida balada tem um texto tristonho, em que o compositor fala da Morte que ele chama e não o quer ouvir:
"Contra a vontade dura-me esta vida,
Antes mil mortes me convém sofrer".
Tristezas de artista cego...
A Balada se desenvolve rica de melismas, cheia de gravidade serena, lembrando bem que o ambiente das catedrais onde vivia Mestre Francisco Cego, como o chamavam, devia deixar sempre fundas ressonâncias na sua alma, tratasse ele embora outros assuntos que não os religiosos.
Disco
Francesco Landino (Itália, 1325-1397): Gram piant'agli occhi
Duração: 03:26
Mais duas Baladas concluirão os exemplos da Arte Nova italiana: uma de Vincenzo da Rimini e a admirável "Io son un pellegrin" de Giovanni da Cascia. Por estes músicos da Itália, principalmente por esta comovedora balada de Giovanni da Cascia, os ouvintes sentirão por certo que na Arte Nova se revelava o dom para as amplas melodias, tão característico do gênio musical italiano. A simplicidade sábia, que se mantém mesmo através da densidade de floreios, e uma das coisas mais admiráveis não só desta Balada de Giovanni da Cascia, como em geral das peças que apresentamos hoje. E a razão dela reside em que essas largas vocalizações nunca têm intenção virtuosística, não são feitas para mostrar habilidades vocais. Ligam-se intrinsecamente à construção sonora, são de caráter eminentemente expressivo, constituem a própria essência da melodia que, sem elas, ficaria descaracterizada e mutilada.
Disco
Vincenzo da Rimini (Itália, século XIV): Ita se n'era
Duração: 03:24
Giovanni da Cascia (Itália, século XIV): Io son un pellegrin
Duração: 04:58
2ª parte
Beethoven - Concerto em Dó Menor (piano)
Beethoven, que iniciou sua carreira artística como virtuose do piano e como improvisador, escreveu cinco concertos para o seu instrumento, dos quais os dois primeiros são obras de mocidade, compostas aos vinte e poucos anos, antes que o genial músico tivesse atingido o pleno desenvolvimento da sua personalidade gigantesca. Ambos mostram ainda muito clara a influência dos músicos da geração anterior a Beethoven, principalmente de seu mestre Haydn e de Mozart. As características pessoais de Beethoven começam a mostrar-se com acentuada evidência, nesses concertos, a partir do 3º, que o nosso programa de hoje apresenta. Nessa obra já se sente a força apaixonada que marcaria as obras da sua maturidade. O próprio compositor dizia a seus editores que os primeiros concertos não davam bem a medida das suas possibilidades; mas que com o terceiro ele julgava já ter atingido um nível novo e mais alto. Realmente o Concerto nº 3 demonstra, como acentuou Abraham Veinus, que Beethoven já "estava pronto para mover-se em direção à Sinfonia Heroica, escrita poucos anos depois.”
Beethoven (Alemanha, 1770-1827): Concerto em Dó Menor, nº 3, op. 37
Duração: 35:18
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* Também encontrado como Ja nun hons pris.