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76º Concerto: Milhaud, Schumann e Händel

14 de janeiro de 1954
3 pessoas*
1ª parte

Milhaud

Darius Milhaud, nascido em 1892, é um dos mais importantes compositores modernos da França. Tendo estudado no Conservatório de Paris, a primeira Grande Guerra impediu-o de concorrer ao famoso Prêmio de Roma e foi ela que, indiretamente, o trouxe ao Brasil em 1917. Deste ano até 1919, Milhaud foi Secretário da Legação da França no Brasil, quando era Ministro francês entre nós o escritor Paul Claudel. Durante sua estadia no Rio, Milhaud teve algum contato com nossos músicos e nossa música, contato fortuito que não nos marcou nem o marcaria. Luciano Gallet, o patrono deste auditório, tornou-se amigo de Milhaud, dele recebeu algumas lições de composição, revelou-lhe a música de Glauco Velásquez e nos deixou um testemunho saboroso de como o então jovem e revolucionário músico francês era professor inflexível, exigindo que o discípulo primeiro se dobrasse a todas as normas tradicionais de harmonizar e compôr, para depois ter o direito de agir por conta própria. Milhaud celebrou seu estágio entre nós em uma de suas obras mais conhecidas, a suíte orquestral “Saudades do Brasil”, evocadora de lugares e paisagens.
Milhaud foi um dos jovens músicos franceses que integraram o chamado grupo dos “Seis”, moços influenciados pelo compositor Erik Satie, que se rebelaram contra o Impressionismo e buscaram “voltar à simplicidade”. Evidentemente a forte personalidade da maioria desses moços, entre os quais estavam Honegger, Poulenc e Auric, impediu a estabilidade dos ”Seis”. O grupo dissolveu-se logo, cada um tomou seus próprios rumos artísticos e os maiores realmente só começaram a produzir suas obras mais importantes após essa dissolução.
Considerado um dos mais importantes compositores franceses surgidos depois de Debussy, Milhaud foi um dos campeões da politonalidade, sistema de agenciamento sonoro que tentaremos tornar claro aos que não sejam músicos.
Do século XVIII em diante, a música passou a basear sistematicamente a construção sonora em séries características de sons, agrupados de acordo com certos princípios de relação de uns com os outros, séries essas chamadas Tons ou Tonalidades, e que têm como tipo a sucessão DÓ RÉ MI FÁ SOL LÁ SI, com repetição do som inicial na oitava superior. Essa série, transportada para várias alturas, em que os sons mantêm sempre a mesma distância entre si, ou relação intervalar, constitui o sistema das Tonalidades ou sistema tonal. Por processos que não é necessário explicar e pertencem a um terreno aridamente teórico, no século XIX, a construção musical em torno desses tons começou a ser rudemente abalada, dando como resultado três orientações principais sobre as quais a música contemporânea largamente baseou seus agenciamentos sonoros: a bitonalidade, a politonalidade e a atonalidade.
Na bitonalidade e na politonalidade, a música, em vez de ser baseada em uma só série característica de sons, baseia-se em duas ou mais. Daí não se conclua que no agenciamento sonoro comum, uma peça se mantenha do princípio ao fim dentro de uma série característica escolhida, dentro de uma tonalidade-base: o compositor pode passar para outras no decorrer da peça (essa passagem se chama modulação), permanecendo a obrigatoriedade de voltar no fim à tonalidade-base, que é chamada tonalidade-principal. Ora, no caso da bitonalidade e da politonalidade não se trata de modulação, trata-se de superposição de dois ou mais planos musicais construídos sobre duas ou mais tonalidades diferentes. Mesmo no passado é possível encontrar alguns fragmentos de obras construídos com tonalidades superpostas. Entretanto, tal procedimento era incidental, não constituía um sistema pré-determinado de agenciamento sonoro, como a binotalidade e a politonalidade modernas. Como amostra da bitonalidade, João Sebastião Bach apresenta um cânone em que a parte aguda se move dentro do tom de Ré menor e a parte grave dentro do tom de Lá menor. Mozart nos dá uma característica politonalidade, de intuito burlesco, no seu sexteto chamado “Músicos da Aldeia”, em que os 4 instrumentos de cordas que participam do agrupamento tocam cada um num tom.
Para completar a explicação, diremos que na atonalidade, orientação iniciada pelo compositor Schöenberg a que hoje chamam também de Dodecafonismo, isto é, sistema de doze sons, nenhuma tonalidade é tomada como linha condutora da peça. Em vez de ser guiada pela escala de sete sons com repetição do som inicial na oitava superior, a composição é fundada numa escala de 12 sons sem nenhuma caracterização tonal.
Dominando todos os processos tradicionais de composição e criando com facilidade, Milhaud tem em sua bagagem bailados, obras para teatro, uma série de Sinfonias para pequenos conjuntos, intermediários entre a música orquestral e a de câmara, peças para piano, canções, músicas de câmara. Suas obras são tidas como de valor desigual e há quem considere que, em seu conjunto, sua música de câmara é a melhor parte da contribuição de Milhaud para a música moderna, conservando sempre um alto nível. Sem descer a certa aridez e a certa banalidade observável nas suas criações de outros gêneros, Milhaud exibe na sua música de câmara todas as suas qualidades e características marcantes: a fluência técnica da escritura e os três fatores, de preponderância variável e dificilmente conciliáveis, que Edwin Evans salientou: “A veemência apaixonada, atribuída por muitos críticos à sua origem judaica. (…) A intensa preocupação com os aspectos da música, considerados como um problema de xadez. (…) Uma curiosa simplicidade, que absolutamente não é afetada, como em alguns compositores modernos, mas ‘inata’, simplicidade que faz com que ‘suas melodias pareçam’, a alguns ouvidos, muito desimportantes para receberem o tratamento que ele lhes dá”.
A música de câmara de Milhaud é exemplificada, neste concerto, com o Quarteto de Cordas nº 7, composto em 1925, e que divide com o nº 4 as preferências dos executantes em geral. Formado por quatro movimentos muito curtos, o Quarteto nº 7 dá aos dois Allegros, inicial e final, um tratamento polifônico talvez excessivamente magro. Mas, como acentuou o já citado Edwin Evans, “nada poderá ser mais suave e casto” que o 2º movimento – Doce e sem pressa.

Fontes bibliográficas:**

Milhaud (França, 1892-1974): Quarteto em Si Bemol Maior, nº 7



Duração: 02:22


Schumann

A canção artística alemã tem em Schubert e em Robert Alexander Schumann, compositor nascido em 1810 e falecido em 1856, seus mais altos representantes. Em um dos primeiros concertos realizados neste auditório mostramos alguns dos admiráveis Lieder de Schubert; os Lieder de Schumann estão representados no programa de hoje com o ciclo intitulado “A Vida e o Amor de Uma Mulher”, escrito sobre versos do poeta romântico Chamisso.
Até 1840, Schumann dedicara-se exclusivamente ao piano. Nesse anos, após lutas enormes, ele consegue desposar a grande pianista Clara Wieck e parece que o amor por fim realizado, se expandiu numa torrente de cantos, onde alegrias, dores, angústias, devaneios, fantasias se fundiram para criar uma série de obras-primas. Os Lieder compostos em 1840, ano em que foi escrito o ciclo “A Vida e o Amor de Uma Mulher”, sobem a mais de cem. “Não me posso fartar de compor para a voz”, escrevia ele então.
Se possivelmente o impulso criador foi dado pela felicidade conjugal tão duramente conquistada, todos os críticos de Schumann são acordes em afirmar que o entusiasmo pela música vocal e a maestria com que ele rapidamente a dominou foram consequências fatais e claras dos seus pendores para a poesia, pendores que de início o levaram a vacilar entre destinar-se à literatura ou à música. O Liede reunia música e poesia, permitiam-lhe tentar a fusão das duas artes preferidas, permitia-lhe juntar ao lirismo da palavra a misteriosa, imprecisa, mas poderosa força emocional da música; permitia-lhe intensificar, ampliar, realçar os versos que ele amava, aquele mundo dos poetas românticos, povoado, como disse alguém, de “visões, nostalgias, ímpetos, ardores”, e “juntar arrepios e soluços inefáveis aos poemas mais desesperados”. (Basch, Schumann, 165).
Chamisso foi, com Heine e Eichendorff, um dos três poetas românticos alemães que Schumann mais musicou, porque lhe eram muito próximos, como acentuou Victor Basch: “Eichendorff (…) o poeta do mistério das frescas clareiras frequentadas pelas fadas maléficas, dos pálidos luares, das noites enfeitiçadas em que vibram, como num mesmo frêmito, as estrelas do céu e os corações enamorados (…) Heine, que também como Schumann foi Eusebius e Florestan, um Eusebius tão puro, tão piedoso, tão cândido como o foi o jovem Schumann, e um Florestan de que a agitação febril chegou a arroubos careteantes que a vida de Schumann não conheceu, mas que sua arte soube interpretar com o mais comovente frenesi. (…) E Chamisso, esse poeta nascido francês, mas que, melhor que qualquer alemão, cantou o amor germânico, o amor ao mesmo tempo etéreo e doméstico, esse amor nupcial, o único com que Schumann vibrava, o humilde dom da mulher ao homem que a elegeu” e que se exprime inteiro em “A Vida e o Amor de Uma Mulher”.

Schumann (Alemanha, 1810-1856): Fraunenliebe und leben, op. 42 (ciclo de lieder)



Duração: 20:06

2ª parte

Handel

George Frederic Handel, um dos grandes gênios musicais da primeira metade do século XVIII, nasceu na Alemanha em 1685. Depois de uma estadia de 4 anos na Itália, para onde fora em 1706, e de uma visita à Inglaterra em 1710-1711, Handel fixou-se em Londres em 1712, onde faleceu em 1759. Naturalizando-se inglês em 1726, Alemanha e Inglaterra disputam-se as glórias de seu gênio, na verdade essencialmente internacional e cosmopolita.
Handel foi um temperamento eminentemente teatral. Majestoso, gigantesco, eloquente, enfeitado e mundano, era homem de teatro até quando não lidava com o palco. As rivalidades reinantes na Ópera de Hamburgo, que praticamente entrara em franca decadência em 1705, conduzem-no à Itália, em busca de melhores ares para o seu gênio dramático. Na Inglaterra é ainda a ópera italianizante que exclusivamente o ocupa até 1732, e de que ele realmente só principia a desviar-se em consequência dos desastres financeiros e artísticos que ela lhe causara.
Apesar das belezas das suas óperas italianizadas, e ainda da contribuição para a música instrumental, a parte mais importante das obras de Handel é compreendida pelos Oratórios, uma das grandes formas da música vocal religiosa. Entretanto, nos seus Oratórios só há de religioso o assunto. Tudo o mais é teatral. Handel dividia-os mesmo em atos, tendo até tentado representar o primeiro deles, “Ester”, só não continuando a fazê-lo porque foi impedido por proibição eclesiástica. Assim é que esse homem, a quem o teatro arruinara, procurou transportar para outro terreno as suas necessidades dramáticas e criou assim as suas maiores obras-primas.
A ópera “Il Pastor Fido” foi representada pela primeira vez em Londres em 26 de novembro de 1712, tendo reaparecido em cena, numa nova versão, em 1734. Esse drama pastoral, muito ao gosto arcádico, foi um fracasso na sua primeira exibição. Faltava a Handel seu principal cantor de então e o substituto, ainda mal conhecido do público inglês, deve ter sido uma das causas do insucesso. Percy M. Young, que nos dá essa informação, ajunta ainda uma outra: “No dia 15 de novembro o Duque de Hamilton tinha sido morto em duelo com Lord Mahun. O acontecimento era mais sensacional que uma ópera nova, e a tagarelice subsequente impediu outras atividades”. “Il Pastor Fido” não deve ter sido mais feliz na sua segunda exibição. Em 1734 Handel já estava em pleno desprestígio teatral: excluído do King's Theatre, fora alojar-se num teatro modesto, onde ficou até poder transferir-se para o Covent Garden, no qual as representações de “Il Pastor Fido” foram retomadas em novembro.
Alguns trechos instrumentais dessa ópera serviram, a Thomas Beecham para arranjar a deliciosa suíte orquestral que encerra o programa, Suíte considerada o melhor dos seus vários arranjos e execuções fonográficas de obras orquestrais de Handel.

Haendel*** (Händel, Alemanha, 1685-1759): Il pastor Fido – Suíte.



Duração: 23:33

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* Oneyda Alvarenga, como que justificando o público reduzido, anota: “3 pessôas”. E abaixo, com tinta vermelha: “(tempestade)”
** Oneyda Alvarenga deixa o espaço em branco, onde certamente citaria Edwin Evans.
*** Oneyda Alvarenga adota várias formas de registro do sobrenome Handel, ou Haendel. Aqui foi normalizado como Händel, nos títulos dos Concertos.

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